Declaração de Dependência - Álvaro Fonseca
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Declaração de Dependência - Álvaro Fonseca

Texto escrito para a iniciativa 'Declaração de Dependência' integrada nas celebrações do Dia Global do Decrescimento 2021.
Declaração de Dependência - Álvaro Fonseca

Quando me sento à mesa para saborear uma refeição que preparei ou alguém preparou para mim, penso por vezes nas diversas pessoas que contribuíram para essa refeição. Em algumas ocasiões aconteceu mesmo tentar contabilizar o número de pessoas envolvidas, mesmo numa refeição preparada em casa.

No círculo mais próximo estão @s vendedor@s do mercado onde compro parte dos alimentos e também @s empregad@s do supermercado onde adquiro os restantes produtos alimentares. Essas pessoas conheço porque as vejo quase diariamente.

Mas depois existem todas as outras que estão envolvidas nos círculos intermédios da comercialização, distribuição e transporte – essas, mais dificilmente conseguirei conhecer. Entretanto, o número já aumentou. E depois há o círculo ainda mais distante dos que semeiam, cultivam, colhem ou criam os diversos items alimentares que fazem parte da minha refeição.

O número de pessoas continua a aumentar, assim como a improbabilidade de me cruzar com elas. Mas depois lembro-me de que todas estas tarefas têm contributos indirectos das pessoas que trabalharam na produção, distribuição e comercialização dos utensílios, ferramentas e máquinas usados na manipulação ou transporte dos produtos alimentares, bem como todas aquelas que trabalham nas empresas que produzem a energia, os combustíveis e a água necessários para todas as tarefas anteriores.

O número acumulado de ilustres desconhecidos avoluma-se ainda mais e nem sequer cheguei ao círculo ainda mais difuso dos trabalhadores das empresas ou serviços públicos que providenciaram todo o apoio de manutenção, administração ou gestão. E nem sequer estou a contabilizar todas aquelas que contribuíram, num passado mais ou menos distante, com os seus saberes, as suas práticas ou a sua força braçal para que fosse possível usufruir de tudo aquilo que usamos agora no presente. Surge finalmente a imagem de uma rede imensa de pessoas e infraestruturas a quem estou inextricavelmente ligado e de quem dependo de forma mais ou menos extensa ou directa.

E é chegado o momento em que sou compelido a declarar que sou de facto dependente. Dependo do trabalho do meu semelhante, próximo ou distante, conhecido ou desconhecido, mas de cujo esforço e de cujos ofícios - manuais, maquinais ou imateriais - a minha vida quotidiana depende.

Mas posso ir ainda mais longe e estender esta análise para o mundo para além do humano, que inclui todos os seres vivos - animais, plantas e microrganismos – que contribuem directamente como fonte dos meus alimentos ou que contribuem indirectamente para garantir as condições ambientais adequadas e o funcionamento dos ecossistemas necessários, incluindo a reciclagem dos nutrientes essenciais.

E podia ir ainda mais fundo e incluir também toda a componente físico-química do mundo à minha volta, que constitui a fonte primária dos materiais incorporados em tudo o que mencionei até agora.

Sou afinal interdependente e ecodependente do mundo humano e não humano, vivo ou não vivo. Eu, como todos os meus semelhantes. Mas nem sempre nos lembramos disso. Pelo contrário, esquecemo-lo a maior parte do tempo e tomamos o que temos por garantido.

Lembro-me então de uma forma ritualizada pelos crentes de certas religiões de reconhecer aquelas ligações dando graças antes do início de uma refeição em família. Não sendo crente, faço-o por vezes em refeições de grupo para agradecer, não a Deus, mas a tod@s aquel@s que contribuíram para aquilo que vamos usufruir.

É afinal uma forma simples de homenagear todo o colectivo de conhecidos ou desconhecidos de quem dependemos, mas também de estarmos mais conscientes da nossa interdependência e ecodependência. E a consciência é um passo fundamental para a mudança.

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