Mobilidade urbana, bem-estar e qualidade de vida: um desafio ao decrescimento
4 min leitura

Mobilidade urbana, bem-estar e qualidade de vida: um desafio ao decrescimento

A mobilidade urbana tem sido um dos temas centrais, mais visíveis e mais sensíveis no debate sobre a sustentabilidade. Grande parte do debate acontece à volta de temas como as infraestruturas ou a mudança de comportamento individual .
Mobilidade urbana, bem-estar e qualidade de vida: um desafio ao decrescimento

A mobilidade urbana tem sido um dos temas centrais, mais visíveis e mais sensíveis no debate sobre a sustentabilidade. Grande parte do debate acontece à volta de temas como as infraestruturas (que rede de transportes públicos? que rede de estradas? que estruturas para ciclistas e peões?) ou a mudança de comportamento individual (como incentivar escolhas relativas à mobilidade feitas em prol do ambiente?). Todo este debate é feito sem sair da esfera do modelo económico dominante, onde grande parte do movimento quotidiano de pessoas no espaço urbano é visto apenas como um vazio transitório (casa-trabalho, casa-escola, casa-trabalho-ginásio) onde cada indivíduo procura fazer o percurso da forma mais eficiente possível. No entanto, em vez de eficiência, podemos também falar de mobilidade em termos de bem-estar psicológico, incluindo dimensões como as relações interpessoais de qualidade ou o sentimento de desenvolvimento pessoal contínuo. A partir desta noção mais alargada sobre mobilidade, que não se reduz a considerações de custo-eficiência, o decrescimento pode ser um ponto de partida para um debate multifacetado sobre a mobilidade.

Foi a partir desta premissa que o Núcleo de Lisboa da Rede para o Decrescimento se juntou à Cooperativa Bicicultura para uma conversa na tarde do passado dia 16 de março, na livraria Ler Devagar, em Lisboa. Para dar o mote ao debate, contámos com intervenções iniciais de Patrícia Melo, cooperante da Bicicultura, investigadora e professora universitária em economia urbana e regional e economia de transportes, e de Paolo Perego, amigo da Rede para o Decrescimento e investigador em psicologia do trânsito e da mobilidade.

O Paolo falou sobre os resultados de um estudo em que participou recentemente em Milão, Itália, junto de uma amostra de utilizadores regulares de bicicleta. A investigação incidiu sobre a forma como a perceção relativa às infraestruturas, a satisfação com a viagem e as atitudes pró-ambientais influenciam a escolha da bicicleta como meio de transporte. Concluiu que, apesar de importantes, a perceção positiva sobre as infraestruturas, o contexto do bairro em que se realizam as deslocações e as atitudes pró-ambientais não são os únicos fatores envolvidos na escolha da bicicleta como meio de transporte. Algumas pessoas andam de bicicleta regularmente por mero gosto (por exemplo, porque é relaxante e as faz sentir bem). Estes fatores influenciam a escolha de forma diferente: por um lado, quem anda de bicicleta sobretudo por razões ambientais tem tendência a usá-la em deslocações quotidianas; por outro, quem associa a bicicleta ao bem-estar usa-a sobretudo por lazer.

Ana Luísa, Paolo e Patrícia

Em seguida, a Patrícia refletiu sobre o facto de os modelos económicos convencionais (usados por economistas, investigadores e decisores políticos) raramente incorporarem fatores que influenciam o bem-estar (físico, mental, social). Esses modelos assumem que o tempo de viagem é tempo perdido (não é produtivo), pelo que as decisões sobre onde investir (que infraestruturas construir? que meios de transporte incentivar? que comportamentos devem mudar?) são feitas sempre tendo como principal preocupação a necessidade de reduzir ao máximo o tempo de deslocação. No entanto, após décadas de investimento público em diversos aspetos da mobilidade urbana, o tempo médio de viagem individual tem-se surpreendentemente mantido nos 30 minutos – apesar de as distâncias percorridas se terem tornado maiores. Esta observação (meios de transportes mais rápidos e  mais infraestruturas, a médio prazo, apenas aumentam as distâncias percorridas, sem diminuir o tempo  da deslocação) é uma excelente ilustração do paradoxo que foi constatado por Ivan Illich (ver, em particular, o livro Energia e Equidade):  muitas vezes, o progresso acaba por ser contraproducente em relação aos objetivos inicialmente propostos, e tem como consequência um elevado impacto ambiental e social.

Depois das intervenções iniciais, a conversa moderada por Ana Luísa Silva, investigadora em estudos de desenvolvimento e membro da Rede para o Decrescimento,   contou com intervenções das cerca de 20 pessoas que assistiram ao evento naquela tarde solarenga. Para além de realçar a importância das infraestruturas para o comportamento individual, falou-se da dimensão do género, dado que são as mulheres que assumem (ou são obrigadas a assumir) o papel de cuidadoras, o qual requer mais e diferentes tipos de deslocações quotidianas, reduzindo a sua liberdade para escolher um meio de transporte como a bicicleta; do desenho urbano e das escolhas para o território que provocaram o contínuo crescimento das periferias de Lisboa e Porto ao longo das últimas décadas, provocando a dispersão e aumentando a distância da deslocação diária casa-trabalho; da quase imposição do automóvel como meio de transporte (para quem tem acesso a ele); e do caminhar como o modo de deslocação mais natural e decrescentista, o qual requer uma perspetiva diferente sobre o tempo de viagem, mas que pode contribuir para o bem-estar e para uma relação mais próxima com a cidade (desde que se esteja a viver no centro da cidade, uma situação cada vez mais privilegiada).

O debate continuou bem para além do horário previsto, mas ficámos com a sensação de que ficou ainda muito por pensar, dizer e fazer. Será um tema para continuar a explorar, tanto em conjunto com a Cooperativa Bicicultura como com outros coletivos e intervenientes políticos, nacionais e locais. Afinal, apesar de o bem-estar ser um conceito em grande medida subjetivo, não existe isolado de fatores relacionais, nem do ambiente que nos rodeia. A mobilidade urbana é uma parte intrínseca da nossa relação com os outros e com a cidade, presente nas nossas deslocações diárias, cuja escolha é influenciada (e muitas vezes determinada) pelas infraestruturas e pelas distâncias a percorrer, mas também por fatores pessoais como as preocupações ambientais, as responsabilidades familiares e laborais e as preferências pessoais.

Seguindo a noção de Illich sobre ferramentas conviviais e a distinção que faz entre "trânsito” (mobilidade autónoma que recorre à utilização de energia muscular) e "transporte" (que recorre a motores mecânicos e transforma as pessoas em clientes, utentes ou passageiros), o paradigma do decrescimento pode ser aplicado à mobilidade urbana, não só para reduzir a injustiça urbana causada pelo monopólio do automóvel e beneficiar opções de mobilidade pública e híbrida, mas sobretudo para impulsionar o trânsito auto-mobilizado e autónomo, andando a pé ou de bicicleta. Assim, o descrescimento pode de facto ser um ponto de partida para pensarmos e pormos em prática uma forma alternativa de mobilidade urbana, que não se restrinja a considerações de custo-benefício mas que promova o bem-estar e a justiça social.

Gostou do artigo? Considere subscrever