Não foram as eleições que o ditaram. Não falo do novo ciclo político em Portugal. Não falo de nenhuma das forças políticas em Portugal, que parecem não ter qualquer entendimento dos profundos desenvolvimentos internacionais que nos moldarão a vida nos próximos anos. Ou como “Podemos ignorar a realidade, mas não podemos ignorar as consequências de ignorar a realidade”.
A realidade de que falo é a de uma força que vem de fora, de dentro, dos tempos. A era da globalização liberal está a chegar ao fim. A economia em que crescemos, baseada no fluxo livre de capital, bens e energia, onde o comércio visava o enriquecimento de todos, está a realinhar-se à sombra dos limites materiais do planeta, da instabilidade ecológica e da fragmentação geopolítica das cadeias de produção e distribuição. Estamos a viver a emergência de uma nova fase: a do capitalismo mercantilista.
Este sistema, apresentado no impressionante livro Le monde confisqué de Arnaud Orain, é caracterizado pela noção cada vez mais inescapável que os estados têm da crescente escassez de recursos capazes de sustentar um crescimento económico constante e na consequente e agressiva competição para assegurar o acesso aos mesmos. Este novo modelo caracteriza-se pela acumulação estratégica de matérias-primas, pelo nacionalismo energético, pela renacionalização industrial, pela constituição de monopólios internacionais e pelo acesso (militarizado se necessário) a elementos de produção críticos.
Ao contrário do passado recente, em que a interdependência era apresentada como virtude, o novo paradigma é marcado pelo protecionismo estratégico, pela relocalização de cadeias de valor e por políticas nacionais que visam garantir acesso exclusivo a bens escassos como lítio, cobalto, terras raras e mesmo água potável. Esta nova abordagem dita “realista” não é apenas especulativa: Veja-se o acordo EUA-Ucrânia relativo às terras raras, ou a intenção americana de controlar a Groenlândia, ou mesmo a Critical Raw Materials Act da União Europeia (que visa assegurar a independência estratégica da UE relativamente a estes minérios). É cada vez mais claro que as potências globais se estão a preparar para uma era de concorrência e não de cooperação.
Neste contexto, as nações de pequena e média dimensão, como Portugal (país de média dimensão sem colónias, sem peso político decisivo e com recursos limitados), enfrentam uma escolha histórica: ou tentam competir nesta corrida desigual, convertendo o seu território em plataforma extrativista e sob imensa dependência de factores externos e fora do seu controle, ou optam por uma estratégia consciente de decrescimento planificado - i.e uma redução planeada e democrática da produção de recursos e da dependência material, centrada no bem-estar social e na recuperação ecológica.
Esta segunda via não significa empobrecimento forçado, mas sim a redefinição do que entendemos por bem-estar e progresso, dentro dos limites biofísicos do planeta - e do país. O que se segue são ideias para um reposicionamento estratégico em alguns sectores, notando que muitos outros existem e que devem ser explorados e aprofundados. Cada um envolve escolhas difíceis, mas também abre oportunidades reais para um modelo de país mais sustentável, justo e levando em conta as mudanças internacionais tectónicas que se operam sob os nossos olhos.
Um primeiro eixo importante é o da soberania alimentar e hídrica. A crise climática e as tensões geopolíticas estão a tornar cada vez mais caro e arriscado fazer depender a nossa alimentação de cadeias globais de abastecimento. Os custos de importação de alimentos, fertilizantes e rações estão a disparar, e fenómenos como a seca extrema colocam em causa a capacidade produtiva futura. Portugal pode investir na agricultura regenerativa, reterritorializando cadeias alimentares e protegendo e regenerando massas de água como um bem comum. Segundo a FAO, práticas agroecológicas aumentam a resiliência às alterações climáticas e mantêm produtividades estáveis no longo prazo. De facto, a agricultura regenerativa está em plena revolução, multiplicando exponencialmente a produção e rendimentos por hectare agrícola, prometendo revitalizar o mundo rural. Políticas públicas fortes, de apoio a pequenos e médios produtores, de restauro e enriquecimento natural de solos e sua capacidade de absorver água e promovam circuitos curtos de produção e consumo são passos essenciais na construção das autonomias, resiliências e estabilidades socio-económicas de que necessitamos para absorver os cada vez maiores choques sistémicos de um mundo em ebulição.
Outra vertente importante será repensar o modelo energético nacional. Não como uma corrida à (impossível) “substituição” dos fósseis por “renováveis” a qualquer custo, mas como uma oportunidade para reduzir o consumo nacional de energia e reorganizar infraestruturas com base na suficiência e na descentralização. A aposta em projetos comunitários de energia renovável, redes locais, e tecnologias de baixa intensidade energética — como solar térmico, isolamento passivo, e sistemas agroflorestais integrados — pode reduzir drasticamente a dependência energética externa. O problema é que, sob a narrativa da transição energética, e movido ainda pelo (falso) imperativo do crescimento económico a todo o custo, o país está a acelerar o licenciamento de mega-projetos solares, eólicos e de mineração, com impactos devastadores nos ecossistemas, nas comunidades locais e na noção mesma de democracia. Portugal não deve cair na armadilha de trocar dependência fóssil por um neocolonialismo interno, onde o interior serve de zona de sacrifício para alimentar ilusões de crescimento verde nas cidades. A preservação e promoção de ecossistemas funcionais deve ser a estratégia central da construção de uma soberania e autonomia decrescentista - porque é deles que tudo dependerá num mundo cada vez mais instável.
Outro aspeto vital é o da mobilidade, pela sua centralidade na organização do território e da vida quotidiana. O atual paradigma (do carro privado, aviação barata, distribuição de tudo por camiões, expansão contínua de infraestruturas rodoviárias, etc) depende de variáveis cada vez menos prováveis de se manterem (como o acesso a fontes de energia abundantes, baratas e fáceis de obter por via do comércio internacional). Uma política de decrescimento implicaria uma transformação profunda, com a eletrificação dos transportes de distribuição (dos quais tudo ainda depende), e priorização do transporte público e partilhado, com cada solução adaptada aos seus territórios de afetação (por exemplo, as estratégias de mobilidade em Lisboa seriam forçosamente diferente das adotadas em Odemira, com menor densidade populacional). Investiria também em redes ferroviárias nacionais, regionais, intermunicipais e internacionais; e reconfiguraria o espaço urbano para dar primazia à mobilidade pedonal e ciclável. A curto prazo, poderia significar menor “liberdade de movimento” tal como hoje é entendida — mas, a médio e longo prazo, significaria mais equidade, saúde pública, coesão territorial e uma redução significativa na dependência de combustíveis fósseis importados.
Como já dito, muitos outros eixos existem, como o da habitação (construção, rehabilitação, acesso, espaço urbano), o da educação e cultura (essencial à emergência e enraizamento de novos e necessários imaginários de bem viver, cooperação, autocontenção e justiça intergeracional), da I&D (em tecnologias ditas low-tech, facilmente reparáveis e replicáveis por todos) ou mesmo da própria democracia. Vincando este último eixo, a necessidade urgente de revisão da nossa democracia poderia implicar a sua descentralização e aprofundamento, adotando práticas deliberativas e locais como mecanismo de auscultação e levantamento das necessidades e estratégias das populações, bem como um importante mecanismo de legitimação das decisões tomadas coletivamente sob o imperativo da construção de autonomia - já que nem todas serão fáceis, nem do agrado de todos. A democracia local atua também como um modelo “despolarizador” numa sociedade onde a política se discute sobretudo nos ecrãs, sem espaço para ouvir e construir com visões diferentes.
Portugal tem, paradoxalmente, vantagens que o colocam numa posição única para liderar este novo paradigma. A sua localização semi-periférica, a escala humana que permite, o peso das redes familiares e locais, a memória viva de modos de vida mais simples e cooperativos, e a sua diversidade ecológica e cultural são ativos reais num mundo de instabilidade permanente. Tentar competir com potências como a China ou os EUA na corrida extrativista global — onde os custos ambientais são externalizados e os ganhos concentrados — seria não só imprudente, mas suicidário. Não temos os volumes de minério, a capacidade militar, nem o poder financeiro para ganhar esta guerra de desgaste.
Não obstante, assumir uma estratégia de decrescimento num contexto internacional em que todos os países ainda operam no modelo “crescentista”, cada vez mais competitivo e centrado na escassez traz inevitáveis dificuldades. Desde logo, Portugal arriscar-se-ia a perder acesso privilegiado a certos mercados e fluxos de capitais internacionais, ao não alinhar com os dogmas de crescimento e exploração acelerada de recursos. A recusa em explorar massivamente os seus minerais críticos, por exemplo, pode levar a represálias subtis, como a exclusão de investimentos estratégicos europeus ou a perda de influência nas decisões de redistribuição de fundos comunitários. Além disso, num sistema económico global ainda profundamente interligado, um país que opta por consumir menos e produzir localmente pode ver-se isolado, com dificuldade em garantir o acesso a certas tecnologias, medicamentos, peças industriais ou fertilizantes que continuam a depender de cadeias longas e controladas pelas grandes potências. Isto pode, no curto prazo, traduzir-se em perda de conforto material, aumento de preços relativos e uma perceção social de "retrocesso" que gera resistência interna.
A nível geopolítico, optar pelo decrescimento também implicaria uma quebra com as expectativas de aliados internacionais — incluindo os da NATO e da UE — que esperam de Portugal uma contribuição ativa nos domínios económico e estratégico. A nossa capacidade de influência nas decisões políticas do bloco europeu poderia ser reduzida, e o país tornar-se-ia potencialmente mais vulnerável a pressões externas, nomeadamente de grandes grupos industriais ou estados com interesses diretos nos nossos recursos. Internamente, a transição exigiria uma reestruturação profunda dos sectores económicos mais dependentes da lógica exportadora ou rentista — como o turismo de massas, o imobiliário especulativo e a agricultura intensiva — com impactos imediatos no emprego e na arrecadação fiscal.
Ou seja, sem um plano cuidado, um forte apoio social e mecanismos de transição justa, o risco de instabilidade política, desinformação e captura populista é real.
No entanto, ao optar por um caminho de decrescimento planificado e democrático, Portugal pode tornar-se um modelo europeu de transição justa e regenerativa. Um país onde a qualidade de vida não depende do crescimento do PIB, mas da saúde dos seus solos, rios e comunidades. Onde o trabalho tem sentido, a mobilidade é acessível, e a segurança material é garantida por redes públicas robustas. Onde os jovens não fogem para o estrangeiro, mas constroem aqui futuros enraizados.
Longe de ser fácil ou “vendável”, o caminho do decrescimento não é uma utopia idílica, mas uma travessia urgente e exigente que exige coragem, solidariedade e visão coletiva de longo prazo. Mas é também uma opção cada vez mais difícil de ignorar, não obstante os programas eleitorais de todo o espectro político, incapazes de reconhecer que as suas projeções e promessas se baseiam em previsões de estabilidade, de um crescimento económico ad eternum e tudo continuar como está.
Num momento em que vários governos europeus estão a considerar sacrificar os seus últimos ecossistemas naturais para explorar minerais críticos — como a Suécia nas suas florestas boreais, a Espanha com as suas monoculturas, minas e parques geológicos, e mesmo Portugal nas suas serras interiores — é urgente levantar a voz contra esta falsa transição verde, que nada mais é do que uma nova forma de extrativismo pintada de ecológico.
A corrida atual não é apenas para obter metais e lucros: é uma corrida ao colapso. Recusar essa corrida é, ao contrário do que dizem, uma demonstração de visão estratégica, coragem política e amor pelo futuro e por Portugal.