A vereda
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A vereda

A vereda
Rede para o Decrescimento - contributos para uma reflexão

Sabendo que o futuro está em aberto e dispostos a desafiar o impossível (1), juntámo-nos em 2018 assumindo o compromisso colectivo de contribuir, de forma efectiva, para enfrentar o que está a ser instalado pelo desenvolvimento científico-tecnológico e pela mercadorização crescente. E estamos de parabéns: ainda cá estamos, empenhados na nutrição deste corpo colectivo. Mas para manter a vitalidade deste espaço de experimentação precisamos de uma reflexão radical e continuada. A desumanização em curso, pressentida e descrita desde sempre, é cada vez mais visível. Sabíamos que íamos chegar aqui e agora, sabemos que um mundo transhumano é cada vez mais provável e os livros que o descrevem estão já nas livrarias.

Mas a criação de novos caminhos implica agir, meter as mãos na massa. Não basta publicar textos, não basta fazer programação sobre alternativas, é preciso dar-lhes concretude e escala. Para nos pôrmos ao caminho, precisamos de perguntas afiadas e lúcidas capazes de esburacar  o véu de normalidade que tudo cobre. Precisamos de separar o falso do verdadeiro pois o novo, aquilo que precisamos de inventar continuadamente,  nunca germinará senão no chão do verdadeiro.

Se está tudo descrito, se sabemos como chegámos até aqui, como se explica que continuemos no mesmo sítio? Como podemos assistir à concretização daquilo que tememos sem nos mobilizarmos efetivamente para o evitar? O que é que nos impede?  O que se passa connosco?

Na Rede todos estamos envolvidos em causas específicas, mas será que a escala da nossa acção está à altura da ameaça que sabemos ser bem real? Poderemos fazer mais e melhor? Como?

A ideia de não haver alternativas (TINA- there is no alternative) constitui uma razão plausível para a paralisia da maioria; mas e os que sabem, estudam e até propõem e experimentam outras opções? Se o papel da filosofia não é apenas interpretar o mundo, mas também transformá-lo, onde andam os filósofos que não se limitam a publicar livros? Eles, os artistas, os intelectuais, os cientistas e os activistas honestos, são suficientes para criar um outro caminho. Porque não o fazem? Havendo uma grande diferença entre conhecer e agir, o conhecimento não está a gerar as ações que instiga. Porquê? Será porque a escola e a academia se transformaram numa máquina de difusão e produção de conhecimento, não para vivermos melhor, como seria sensato, mas, sobretudo, para responder (e de forma cada vez mais rápida) à agenda instalada da competição e da produtividade? Tal como nas outras áreas, estes profissionais têm-se deixado transformar em meros funcionários encarregues de manter a circulação do conhecimento-mercadoria e a vitalidade da sociedade do espectáculo. O conhecimento foi separado da vida a um nível tão profundo que se torna quase impossível entender o quanto é absurda a situação a que chegámos.

Não será a falta de desejo que está na origem da impotência actual? Dizemos desejar um mundo melhor para todos, mas se calhar só nos implicamos superficialmente na sua efectivação (2). Só o desejo genuíno tem o poder de transformar o impossível em novas possibilidades. Afinal o que é a realidade senão a ficção da maioria? (3).

Há soluções para os problemas actuais e elas não param de surgir acompanhadas de estudos científicos e experiências no terreno que demonstram a sua exequibilidade e eficácia. Então o que nos falta para mudar de vida? Serge Latouche num balanço dos últimos 20 anos (4) conclui que o sucesso do decrescimento no meio académico tem apagado o seu potencial de mudança devido às ambições carreiristas. Ao mesmo tempo, diz ele, que os conceitos do movimento estão a ser recuperados e banalizados, neutralizando o seu carácter subversivo. Será que, em vez de contribuirmos para a mudança que preconizamos, o que nós, os descrescentistas  tal como os activistas, temos estado a fazer é, sobretudo, atirar mais achas para a fogueira que o sistema ateou e pretende manter bem acesa, custe o que custar?  Ele tudo devora (veja-se o que aconteceu por ex. ao Maio de 68), saboreia-o com um apetite ilimitado, e vai falsificando (5) e pervertendo, diante dos nossos olhos, e até com a nossa anuência e cumplicidade, tudo o que é passível de o ameaçar. Não esquecer que nos tornamos cúmplices activos na erosão do movimento sempre que, por desatenção ou (até) generosidade, aceitamos ligar o decrescimento a acções/eventos que querem evidenciar-se pela mera exibição das últimas novidades (o que está a dar). Para o evitar, para fugir dos clichés e ir descolando o falso que continuamente se cola à superfície do verdadeiro, precisamos de pensamento crítico afiado e de praticá-lo continuamente. Estamos a fazer isso?

Tudo isto já sabemos, tudo isto está escrito e documentado. Mas S. Latouche conclui, no mesmo tom desiludido que ouvimos em 2012, no CIDAC, que nestes 20 anos, não só não avançámos, como se verifica um retrocesso. Então o que vamos fazer? Manter esta dança, fingindo que estamos a fazer alguma coisa ou fazer realmente alguma coisa?

Quando vamos deixar de reagir? A sua ineficácia não é já demasiado evidente?  Decidamos agir, façamos o que apregoamos. Deixemo-nos de apontar o que os outros devem fazer e lancemo-nos nós à aventura de o concretizar. É isso que precisamos: construir outra realidade e confiar no poder do exemplo para cativar o mundo (não precisamos dos mass media, não há como confiar neles). Mas teremos de estar prontos para as consequências pois o novo não passará despercebido - o sistema tem um faro muito apurado para detectar e absorver ou esmagar tudo o que não o reproduz, o que é outra coisa (6).

A Rede para o Decrescimento fez quatro anos e exige uma reflexão aprofundada não só sobre o seu desenvolvimento, pois é um organismo em processo, como sobre a sua natureza concreta (aquilo que é agora). Afinal quem é a Rede para o Decrescimento? O que é que criámos? Corresponde às nossas expectativas? Está a criar alguma coisa de novo ou é apenas mais uma nova forma da mesmice instalada? Será capaz de substituir a certeza pela errância, colocando o mundo em estado de hesitação? Propicia a mudança, pessoal e societal, que preconizamos? E nós, enquanto nós da Rede, como e onde está cada um de nós?

Vamos certamente concluir que a Rede precisa de um corpo mais potente e dinâmico, que requer mais nós, mais círculos e, sobretudo, mais núcleos locais. Mas interessam quaisquer novos nós ou só os que são verdadeiramente afins?  Há um limite para a diversidade não tolher a ação?  É possível instalar o decrescimento sem uma implantação no território, nos lugares onde cada um de nós habita? Será que vamos reforçar a sua estrutura, assumindo o decrescimento como uma componente fundamental da nossa vida, independentemente do muito ou pouco tempo de que dispomos para a Rede?

Para ser pertinente, para operar transformações, a Rede precisa de duração, não pode ser uma mera iniciativa pontual. Mas só será pertinente se a duração não levar à perda de vitalidade, caso contrário será mais uma organização zombie a entupir a democracia. Precisamos, portanto, de manter um acompanhamento continuado e lúcido deste ser colectivo que trouxemos ao mundo. Vamos fazê-lo? Ou optamos por ir desistindo, ausentando-nos mansamente em modo tuga, como quem não quer a coisa, vencidos pelo desgaste? Desgaste, não tanto do trabalho em si, mas, sobretudo, do que é gerado na tensão das relações inter-pessoais e que vamos acumulando sem que procuremos superá-lo. No entanto, é importante lembrar que este mal-estar abre a oportunidade de tecer o que vamos sendo, algo que requer um labor vital e ininterrupto, e que, ao mesmo tempo quando superado, estreita os laços que nos unem aos outros,  transformando-se então em alegria. O que vamos escolher?

Decidindo fazer realmente alguma coisa, precisamos de uma base sólida: um desejo vibrante e radical de mudança, uma fé inabalável nessa possibilidade, trocar o conforto das certezas pelo desassossego do não-saber (errância) e persistir na coerência. A partir daqui, mesmo um pequeno grupo, tem tudo o que é necessário para construir uma pequena vereda (7) ao lado da autoestrada do sistema. O mero facto de existir, de ser verdadeira, é por si só um potente motor de mudança. Não só porque a comparação escancara o lado negro do sistema, tornando-se mais difícil ignorá-lo, como o TINA, aquilo que paralisa a maioria, se vai esvaziando. Mas adquirir o poder para o fazer implica uma transformação interior, e essa parece-me ser a principal dificuldade. Quem não está sob a acção do TINA parece disposto a tudo (manifestações, livros, cartas abertas, petições, greves de fome, acampamentos de protesto, …), todos os sacrifícios, desde que não tenha de mudar. Tudo menos transformar-se. Mas enquanto isto não acontecer o sistema continuará no controlo e as nossas acções, por mais criativas e espectaculares que sejam (veja-se a Climáximo), não passam de achas para avivar a fogueira que almejamos extinguir. Parece-me que é essa dificuldade que gera a impotência de quem sabe o que está a acontecer no mundo. Cada um de nós precisa de iniciar/manter um encontro de si consigo próprio, num processo sem fim, e que está suspenso no “modo funcionário de viver”, como dizia A. O’Neil, o modo zombie a que nos reduziram (e nos deixámos reduzir). De uma forma ou de outra, estamos (fomos) virados do avesso e convencidos que a alegria, o poder e o bem-estar estão no exterior, fora de nós. Assistimos a uma corrida insana para o aperfeiçoamento da imagem pessoal e para a acumulação de bens convencidos que, uma vez detentores de poder e segurança, poderemos finalmente ser felizes. Então a nossa vida reduz-se à procura obsessiva do que a sociedade/mercado valoriza, expressamente ou sub-repticiamente (e apesar de alguns não desistirem de procurar a saída, estamos todos, de algum modo, presos nesta rede). Conquistar o que nos é apontado implica competir, de forma eficiente e implacável, pois esses bens são escassos e vedados à maioria (aqui, para isto, já há limites…). E esse passa a ser o sentido da vida (a vidinha ) - a expectativa renovada ad eternum de confirmar que, afinal, somos um dos poucos eleitos. E, tal como nas raspadinhas, não desistimos de  tentar sair vencedores e, qual burro obcecado pela cenoura que lhe acenam, não olhamos à volta. Não nos questionamos, não nos ocorre a existência de outros modos de vida que, afinal, estão ao nosso alcance se mudarmos de perspectiva. Como meros consumidores, somos mantidos num estado de insatisfação permanente. O que ia saciar-nos afinal será outra coisa, algo melhor, lançado agora mesmo no mercado - a última novidade. É assim que funciona o progresso baseado no crescimento económico, sempre a produzir necessidades e produtos para as satisfazer, numa busca e gasto incessante de recursos. E esta demanda está agora focada na exploração de um continente novinho em folha: a vida ela própria. Depois dos OGM (8) o sector da biotecnologia corre a patentear genes, não os criados em laboratório, mas os naturais que são propriedade de todos nós. A privatização e mercadorização da vida (genes, sementes, barrigas de aluguer, …) está em marcha acelerada. “Estima-se em 20 000 os genes actualmente cobertos por patentes, 4 000 deles são humanos” (9).  E neste insólito processo  o dinheiro, criado para servir as pessoas, serve-se agora delas para garantir a sua reprodução ilimitada (10).

Este é o movimento da maioria, mas, como sabemos, o futuro não está pré-determinado. Há sempre vários futuros possíveis.  Um deles, o tal  do mundo melhor para todos, pode  talvez concretizar-se se, dispostos a mudar, pararmos de nos ausentar (11). Basta decidir convocarmo-nos e aceitar o convite, comparecendo. Encontrados connosco próprios, o nosso centro deslocar-se-à de fora para dentro possibilitando a recuperação da complexidade da nossa vida interior, uma riqueza ilimitada onde nunca a escassez germina (12). Iniciado o diálogo com os “outros” que nos habitam, veremos o nosso corpo (13), até então impotente, a tomar a vida nas suas mãos. Talvez continuemos sem saber quem somos, mas tal poderá vir a seu tempo, pois o caminho é nesta direcção. Operando essa metamorfose, em virtude de termos enfrentado o que nos ameaça, suspeito que poderemos então ser habitados pela alegria, pela gratidão e pela leveza vibrante da saciedade.

E, olhando para tudo o que fomos desejando e acumulando, percebemos o quanto é inútil e absurdo, e então perguntamos:  afinal o que é que eu preciso mesmo? O que é que é imprescindível para ter uma vida boa, uma vida plena?

Epicuro (14) sabia, mas não tem sido levado a sério e, durante séculos, perdemo-nos nas armadilhas do ter e do poder. Finalmente estamos agora a duvidar que os bens materiais sejam o garante de uma vida boa e a redescobrir o valor da simplicidade voluntária. A intensidade da nossa vida pode ser nutrida pela ética da frugalidade, pela relação com a natureza, pela amizade/cooperação e pela aventura, sempre renovada, que a dimensão espiritual, a busca do conhecimento e a arte providenciam .

Então podemos enraizar num lugar como se fossemos uma grande e frondosa árvore que, a partir do sol, produz alimento e oxigénio e, sem medo de algo lhe faltar, os partilha generosamente com a miríade de seres que sustenta.

Sim, podemos escolher ser como as árvores, que, sem medo e sabendo quem são, suprem as suas necessidade ao mesmo tempo que nutrem tudo à sua volta, numa afirmação e celebração continuada da própria vida.

A riqueza desta forma de vida está ao nosso alcance e abre-se para nós sempre que desejada e escolhida de forma voluntária.

Mas será o que verdadeiramente queremos?

Só o desejo genuíno pode extrair possibilidades do impossível…(15)

Notas:

(1) (…) “o possível opõe-se logicamente ao impossível, mas ontologicamente decorre dele: é toda a história da vida e do homem, da recorrente criação de possibilidades a partir da realização de prévias impossibilidades” (pág. 32), Sousa Dias , “Pre-Apocalypse Now- Diálogo com Maria João Cantinho sobre Política, Estética e filosofia ”,  Documenta, Nov. 2016

(2) A constituição dos modos de existência ou dos estilos de vida não é apenas estética é aquilo a que Foucault chama ética, por oposição à moral. A diferença é a seguinte: a moral apresenta-se como um conjunto de regras coercivas de um tipo especial que consiste em julgar acções e intenções referindo-as a valores transcendentes (é bem, é mal…); a ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam aquilo que fazemos, aquilo que dizemos, segundo o modo de existência que isso implica. Dizemos isto, fazemos aquilo: que modo de existência implica isso? (…) São os estilos de vida , sempre implicados, que nos constituem enquanto tal ou tal. (pag. 139) em “Gilles Deleuze” Conversações, Editora Fim de Século, 2001

(3) “Não existe real em si, mas sim configurações daquilo que nos é dado como o nosso real, como objecto das nossas percepções, dos nossos pensamentos e das nossas intervenções. O real é sempre o objecto de uma ficção, ou seja, de uma construção do espaço onde se entrelaçam o visível, o dizível e o fazível. É a ficção dominante, a ficção consensual, que denega o seu carácter de ficção fazendo-se passar pelo próprio real e traçando uma linha de divisão simples entre o domínio desse real e o das representações e das aparências, das opiniões e das utopias. A ficção artística como a acção política atravessam esse real, fracturam-no e multiplicam-no segundo um modo polémico.” (pág- 112) Jacques Rancière- “O espectador emancipado”, editora Orfeu Negro, 2010

(4)  “20 ans de décroissance: ébauche d’un bilan”, Serge Latouche, Revista Kairos Junho-Agosto 2022.

(5) “as somas colossais recentemente investidas, que visam claramente apropriar-se de toda a herança cultural , anunciam uma exploração descarada da mesma, não tanto para substituir o falso pelo verdadeiro, mas para legitimar o falso ao ponto de fazer esquecer o verdadeiro” (pág. 235)  Tomás Maia, “A vida a Crédito” Documenta, Abril de 2022

(6) Enfrentar o sistema é perigoso, conhecemos a violência de que é capaz. Mas não o tentar e  viver miseravelmente (sobreviver) não será ainda mais perigoso?

(7) Terá de ter uma duração longa. Somos muito bons a inventar coisas pontuais mas péssimos a alimentar a sua longevidade. Exemplos não faltam, veja-se por exp. a Ajudada, Portalegre 2013.

(8) Os Novos OGM resultam de novas técnicas de engenharia genética (“tesouras genéticas” como o CRISPR/Cas). Estas ferramentas tornam o genoma acessível a alterações de um modo radicalmente novo e muito mais profundo acarretando riscos ambientais acrescidos. O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) deliberou, em 2018, que os Novos OGM devem ser regulados pelas leis aplicáveis aos OGM já existentes na UE, mas a CE está a ignorar o parecer e a tentar desregulamentar e impulsionar o seu cultivo ignorando todos os riscos e direitos democráticos. Mais info - https://www.stopogm.net/nao-a-desregulamentacao-dos-alimentos-com-os-novos-ogm

(9) Excerto da comunicação de José Luís Garcia “A Edição Genética do Futuro Biológico”no webinar “O Admirável Mundo Novo da Edição Genética”, 27 de Maio, 2021, organizado pela PTF https://www.stopogm.net/evento-o-admiravel-mundo-novo-da-edicao-genetica

Como pode estar legalizada a encomenda e compra de bébés humanos ? Como aceita que uma mulher gere um filho para o vender?

Meia-dúzia de mega empresas do agro-negócio estão a caminho do controle total da produção alimentar no planeta. Como é possível?

(10) “A vida a Crédito”, obra citada acima, faz uma análise certeira da aniquilação da a arte pelo capitalismo.

(11) “Hannah Arendt  contava que o mal obriga a um desentendimento da pessoa consigo mesma insuportável a ponto de preferir ausentar-se. Um certo pensar do cálculo e da objeto, pensar sem rosto, sem outro de si, sem consciência de si, faz justamente esse caminho. Desmaterialização relacional e banalidade do mal são da mesma família. (…) O pensar ético não pode ser este que ausenta, mas sim, pelo contrário, aquele que apresenta e faz conviver consigo próprio, o que pede uma ecologia interior em vez de um sistema imunizador” (pág.s 99/100), André Barata. “Para Viver em Qualquer Mundo – nós, os lugares e as coisas ” Editora Sistema Solar (Documenta), Maio de 2022

(12) Lembremos pessoas como Nelson Mandela

(13) “Qualquer corpo se cria continuamente na experiência de ser-estar-fazer. (…) a intensidade do corpo é demasiada para o feixe reduzido que temos vindo a aceitar enquanto corpo. (…) se me recorto desse estar amplo que integra o ser e o fazer impossibilito o encontro. ausento-me imobilizando a ondulação que vou sendo. posso fugir, sair da sala… mas então não há encontro. posso ficar e ausentar-me de mim, mas então não há encontro, há uma representação do encontro, um mapa do encontro. é nessa simulação que parecemos fingir poder encontrar sossego. (…) no brotar contínuo do corpo há paz, há sublime, quietude, mas não há sossego, não há fim, não há escravidão, não há imobilidade. (…) um corpo é sempre nómada ao deslocar-se em si mesmo enquanto se tensiona com a criação de mundo. (…) parece-me um problema profundamente impregnado no comportamento humano: confundir atravessar com chegar, ter a convicção (mais ou menos clara) de que existe uma salvação que me descansará de pulsar, o conhecido pote de ouro do outro lado do arco íris, como se pudesse ausentar-me de existir e passar a funcionar, substituir o pulsar de acontecer pela repetição das práticas que percorri enquanto acontecia, suspirar por um outro exterior a mim (gente, máquina, sistema, dispositivo) em que possa depositar a garantia da minha existência.” Sofia Neuparth, citado do texto “Contributos para Outras Leituras” , pag.6,integrado no catálogo “Á Procura de Um Outro Corpo”. https://outrocorpo.files.wordpress.com/2015/05/port.pdf

(14) Epicuro classificou os “desejos humanos em três categorias: 1) desejos naturais e necessários, 2) desejos naturais, mas não-necessários, 3) desejos não-naturais e não necessários. Primeiro estão os desejos ligados à conservação: comer, beber, repousar, etc. e estes seriam os únicos válidos pois anulam o mal-estar do corpo. Em segundo estão os desejos oriundos de variações supérfluas dos prazeres naturais: comer bem, beber bebidas refinadas, vestir-se com luxo, etc. Precisamos comer e beber para sobreviver, mas não de forma refinada. Em terceiro constam os desejos "vãos", nascidos das "vãs opiniões dos homens" : os ligados à obtenção de riqueza, poder, honras, etc. Para ele apenas os desejos do primeiro grupo são sempre plenamente satisfeitos, pois têm por natureza um limite preciso que consiste na eliminação da dor. Quando eliminada, o prazer não cresce mais, ou seja, não conduz ao vício. Os segundos já não têm esse limite, e por isso podem provocar dano, assim como os terceiros, que ainda por cima produzem perturbações na alma. Estes últimos são os piores, pois não conhecem limites naturais. Se alguém deseja riqueza ou poder, não importa o quanto tenha, sempre buscará mais. Estes desejos não são naturais aos seres humanos, mas são inculcados pela sociedade e por falsas crenças sobre o que realmente precisamos”. Adaptado de https://www.filosofiaepsicanalise.org/2017/09/os-tipos-de-desejos-em-epicuro.html

(15) O teorema de Bell,  formulado em 1964, diz que todos os objetos e acontecimentos do cosmos estão interligados e reagem às mudanças de estado uns dos outros. O que o astrónomo Arthur Eddington já previra ao dizer “quando o electrão vibra o universo estremece”. Adaptado de Deepak Chopra, “A Cura Quântica”,Editora Self (a 1ª edição é de 1989).

Se tudo está ligado a transformação individual e voluntária levará à invenção de novas formas de vida colectiva. Aquelas em que, sem hierarquia, se nutre o bem-estar de cada um e se “faz da afirmação das suas diferenças, as variáveis de uma função comum, comunitária” adaptado de Sousa Dias (pág.15) .  Só a transformação individual ecoando  em todos os níveis pode consolidar e preservar a transformação social que desejamos. Claro que isso não diminui a importância das reformas político-sociais estruturantes, mas estas terão de ocorrer simultaneamente. Como provam todas as grandes revoluções ( da Francesa à do 25 de Abril) uma mudança estrutural é insuficiente para instaurar um mundo melhor para todos. Não tendo sido desejada por cada um é sempre sentida como imposição, o que esvazia todo o seu potencial transformador.

Texto de Graça Passos*

* Nota final - este texto resulta do exercício que me propus para alinhar pensamentos, afiar a lucidez e estimular a imaginação de acções concretas (o que devemos e podemos fazer agora?). Entendê-lo como o apontar do dedo a alguém concreto  não passa de um equívoco, apontar o dedo cria muros e nós precisamos é de abraços. Estamos todos, mais ou menos, capturados pelo sistema, será muito ingénuo pensar o contrário.

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