Visão crítica dos acordos da COP26
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Visão crítica dos acordos da COP26

Visão crítica dos acordos da COP26
Artigo originalmente publicado no Jornal da Ciência

“Nós, humanos modernos, estamos consumindo / poluindo / destruindo a base biofísica de nossa própria existência”, alerta Clóvis Cavalcanti, presidente de honra da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica (EcoEco)

Tomo emprestado aqui, conceitos elaborados por William Rees, professor emérito da Universidade de British Columbia (Canadá), criador do conceito da pegada ecológica e meu colega no grupo da International Society for Ecological Economics (ISEE) chamado Circle of Ecological Economics Elders (abreviadamente, CoEEE). Meu propósito é tecer a seguir alguns comentários sobre os acordos finais da recém concluída COP26, cúpula do clima da ONU, realizada em Glasgow (Escócia). Rees e eu temos nos reunido com nosso grupo, de forma virtual, quinzenalmente. Fizemos isso logo depois da COP26, no dia 15 de novembro. Estou, portanto, entro do contexto do que foi concluído a partir do pensamento de Rees.

É uma grande ironia, se não fosse trágico, que tantas pessoas bem-intencionadas, especialmente organizações não-governamentais voltadas para o clima e cidadãos comuns, tenham perdido tanto tempo e esforço na COP26 em Glasgow. Não tanto porque os negociadores oficiais tenham conseguido tão pouco, mas sim porque:

1) A mudança climática não é a verdadeira ameaça existencial. E sim aquilo que William Rees denomina de overshoot(ultrapassagem, sobrecarga). O overshoot ocorre quando as pessoas usam energia e recursos biológicos mais rápido do que os ecossistemas podem regenerar, e poluem além da capacidade de assimilação da natureza. Segundo Rees, o overshoot é um meta-problema, a causa da maioria dos chamados “problemas ambientais”, incluindo as mudanças climáticas.

2) O overshoot significa que nós, humanos modernos, estamos consumindo / poluindo / destruindo a base biofísica de nossa própria existência. Segue-se que:

3) O overshoot é, em última análise, uma condição fatal. No entanto:

4) Os delegados oficiais da COP26 em Glasgow nem mesmo reconheceram a noção do overshoot ou suas consequências e implicações. É preciso perguntar se isso é por ignorância (difícil imaginar que tantos cientistas e conselheiros de governo não estejam cientes do overshoot) ou engano deliberado — a mudança climática como distração para garantir que o público permaneça inconsciente da ameaça real que ela significa.

5) Mudanças climáticas / aquecimento global constituem apenas um sintoma importante de overshoot. A mudança climática é um grande problema de gestão de resíduos — o dióxido de carbono sendo o maior resíduo entrópico em peso das economias industriais

6) Não podemos resolver as mudanças climáticas ou outros sintomas importantes de overshoot – perda de biodiversidade, desmatamento tropical, pesca excessiva, degradação da terra / solo, poluição de tudo, a possibilidade de pandemias, etc. – isolados dos outros casos de ultrapassagem (overshoot).

7) No entanto, se o overshoot fosse revertido, todos os seus sintomas seriam aliviados simultaneamente.

8) As soluções propostas e as principais tentativas de resolver a questão da mudança climática, incluindo o Green New Deal, exigem investimentos maciços em verdadeiras não-soluções de alta tecnologia, incluindo a chamada energia renovável e tecnologias não comprovadas de captura e armazenamento de carbono. Esta abordagem não reverterá o aquecimento global e agravará o overshoot.

9) Os chamados vetores modernos de energia renovável (ER) — principalmente turbinas eólicas e energia solar fotovoltaica (FV), e agora também hidrogênio — enfrentam grandes dificuldades técnicas, incluindo possível escassez de materiais para sua produção; exigem aumentos maciços na mineração e refino envolvendo combustíveis fósseis, resíduos tóxicos e trabalho, muitas vezes, escravo / infantil; são ecológica e socialmente prejudiciais; têm que superar os principais gargalos de distribuição, ocupar mais espaço do que muitos países têm disponível, e são impossíveis de se expandir em um período relevante para a emergência do clima.

10) ERs também não são de fato renováveis, mas meramente substituíveis (uma vida útil de 15-20 anos para turbinas eólicas; 20-30 para painéis solares, por exemplo).

11) A energia solar fotovoltaica em escala de rede em latitudes mais ao norte como Canadá, grande parte da Europa e Rússia é incapaz de gerar energia suficiente para manter a sociedade. (A principal limitação é que os fatores de capacidade — energia efetivamente fornecida em comparação com a capacidade nominal — costumam ser menores que 10% e o retorno de energia no ciclo de vida sobre a energia investida é menor que 3:1). O vento também não é confiável em muitos locais. Juntos, o sol e o vento não podem substituir quantitativamente os combustíveis fósseis (CF).

12) Turbinas eólicas, painéis solares e a infraestrutura a eles relacionada, bem como todas as outras máquinas e equipamentos que teriam de ser eletrificados e substituídos, ainda são fabricados usando principalmente combustíveis fósseis. Mesmo se fosse viável, não poderíamos fazer a transição sem os combustíveis fósseis, e isso por si só consumiria muito de qualquer orçamento de carbono remanescente (alguns cientistas do clima dizem não haver tal disponibilidade).

13) Os defensores das ERs deviam fazer algumas contas. Substituir 50% do uso global de CF por eletricidade até 2030 exigiria que o mundo construísse aproximadamente 1,2 vezes todo o estoque global acumulado atual de parques eólicos e painéis solares a cada ano, durante os próximos nove anos — e isso pressupondo que uma unidade de eletricidade seja equivalente a 2,7 unidades de energia fóssil, que aplicações difíceis de eletrificar se tornarão fáceis e que não haverá crescimento na demanda ou problemas de abastecimento de minerais. Tudo isso em um mundo que espera mais dois bilhões de pessoas e um aumento de 50% na demanda por energia até 2050.

14) Esse cenário não tem como se materializar; é um teorema do impossível.

15) O que tem um lado bom porque, se os humanos de cabeça industrial adquirirem outra fonte abundante e barata de energia, vão usá-la para continuar consumindo / poluindo / destruindo o planeta.

16) Embora tais aborrecimentos possam ser evitados, em nosso seguimento do curso atual, o colapso caótico se delineia como inevitável.

17) Para começar a resolver esse problema, devemos reconhecer que a pegada ecológica humana, incluindo a porção do overshoot, é igual ao produto do consumo material médio vezes a população, e agir de acordo com isso.

18) Enquanto permanecermos ultrapassando os limites da natureza, alcançar produção / consumo sustentável significa essencialmente menos produção / consumo.

19) Daí que seja preciso negociar: a) grandes mudanças no estilo de vida do consumidor (uma redução de 80% no consumo de energia / materiais per capita nos países ricos); b) o compartilhamento mais equitativo da bio-capacidade global e da produção econômica; c) uma estratégia populacional global para permitir uma queda suave da população para um a dois bilhões de pessoas que possam viver confortavelmente de modo indefinido sem esgotar a ecosfera. Objetivo geral: uma economia global menor em estado estacionário, com muito menos pessoas vivendo de maneira mais equitativa e segura dentro dos meios biofísicos da natureza.

20) Estes últimos pontos servem para que se entenda por que os delegados oficiais da COP26 em Glasgow não reconhecem o overshoot ou suas consequências e implicações. Abdicar do consumo irracional de hoje, apesar de seu conteúdo ilusório, é impensável.

* O artigo expressa exclusivamente a opinião de seus autores

Clovis Cavalcanti é economista, possui graduação pela Universidade Federal de Pernambuco (1963), Pós-graduação pela Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro (1964) e Mestrado pela Universidade de Yale nos Estados Unidos (1965). Possui título de Pesquisador I do CNPQ (1976-1980). Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Mercado de Trabalho; Política do Governo, atuando principalmente nos seguintes temas: meio ambiente, desenvolvimento, sustentabilidade e etnodiversidade. É autor de um total de 11 livros, 7 em co-autoria, e cerca de 70 artigos. Organizou o primeiro curso de Economia do Meio Ambiente no Brasil, em 1975, na Universidade Federal de Pernambuco, na qual também participou da fundação do Programa de Pós-Graduação em Economia (Pimes). É ex-colaborador regular do Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e Diário de Pernambuco. Foi pesquisador e diretor do Departamento de Economia da Fundação Joaquim Nabuco (1973) e em 2013, recebeu o título de Pesquisador Emérito da Fundação. Também, foi fundador, presidente-eleito (2016-2017) e presidente (2018-2019) da International Society of Ecological Ecomics (ISEE) e Presidente de Honra da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica (EcoEco). Foi Academic Visitor na Universidade de Oxford, Grã-Bretanha (2000, Michaelas Term). Fundou e dirigiu (2010-2012) a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade (Anppas). Participou da elaboração da estratégia de desenvolvimento da Angola para 2003-2025, e ademais, do estudo do governo do Reino do Butão (Himalaia) para a ONU sobre a filosofia da Felicidade Nacional Bruta (GNH, em inglês) em 2012-2013. Sua atividade de pesquisa atual concentra-se em: "Etnoeconomia" (conceito que introduziu em 2000 em Oxford, publicado em Current Sociology, jan. 2002), Felicidade Nacional Bruta: O Paradigma de Desenvolvimento do Butão e Economia Ecológica.

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