A ganhar se perde e a perder se ganha.
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A ganhar se perde e a perder se ganha.

As questões tabu sobre o aumento da capacidade aeroportuária em Portugal
A ganhar se perde e a perder se ganha.

Artigo publicado na edição impressa do jornal MAPA nº 23 (Abr-Jun 2019), pp. 9-10


No dia 8 de janeiro de 2019, foi assinado um acordo  sobre os princípios financeiros e económicos para a extensão da capacidade aeroportuária na região de Lisboa entre o Estado Português e a VINCI Airports, concessionária da ANA – Aeroportos de Portugal, que explora todos os aeroportos nacionais. De acordo com o documento disponível no site da ANA / VINCI Airports, o acordo visa a expansão da capacidade do Aeroporto Humberto Delgado em Lisboa e conversão da Base Aérea nº 6 (BA6) no Montijo num aeroporto civil para atingir o objetivo de 72 movimentos por hora no “sistema aeroportuário de Lisboa” (48 movimentos por hora em Lisboa e 24 movimen- tos por hora no Montijo), quase duplicando a capacidade atual de 38/40 movimentos por hora, atingindo um volume de pas- sageiros de 50 milhões por ano. O acordo financeiro inclui um investimento de 650 milhões de euros no Aeroporto Humberto Delgado e 500 milhões no futuro aeroporto civil no Montijo, bem como 156 milhões de euros como compensação à Força Aérea e na construção de novos acessos entre o futuro aeroporto e a Ponte Vasco da Gama, num horizonte temporal que se estende até 2028. Nada se sabe sobre o valor do património do Estado Português (terreno, instalações e pistas existentes na BA6) que são cedidas à ANA / VINCI até 2062.

O foco operacional do Aeroporto Humberto Delgado centrar-se-ia nas operações Hub, portanto viagens de longo curso e os respectivos voos de ligação, enquanto o futuro aeroporto civil no Montijo estaria focado nas operações ponto-a-ponto de médio curso, geralmente promovidas pelas chamadas companhias “low cost”. No Montijo seria necessário proceder ao reforço e aumento da pista até aos 2400 metros e criar espaços de estacionamento de aeronaves, para além da construção do Terminal e novos acessos rodoviários à Ponte Vasco da Gama que tem como um dos acionistas principais a própria VINCI. Em Lisboa, os investimentos previstos incluem a construção de novos acessos independentes da 2ª circular para Norte e Poente (não se sabe em que  terrenos), o aumento de lugares de estacionamento de aeronaves, bem como o aumento do Terminal 1 com mais posições de contacto e redução da necessidade de deslocação em autocarro. Existem dois pontos-chave neste cenário: Será necessário obter a autorização por parte da ANAC para o encerramento da pista secundária 17/35 que é apenas utilizada como recurso em condições meteorológicas desfavoráveis. Aparentemente, isso será dependente de uma alternativa no futuro aeroporto do Montijo. Por outro lado,  o aumento  do  número de movimentos aéreos por  hora em 25%, de 38/40 para 48, como previsto no acordo citado acima, requer uma reorganização do espaço aéreo no sentido de reduzir o espaço reservado para operações militares a partir das bases de Sintra e Monte Real. Nada se sabe sobre eventuais acordos e contrapartidas que a esta questão dizem respeito.

Embora o Primeiro-Ministro António Costa, na abertura da IV Cimeira do Turismo Português em Setembro de 2018, tenha afirmado que existe um largo consenso na população portuguesa relativamente à necessidade do aumento da capacidade aeroportuária em território nacional e nomeadamente na região de Lisboa, nos últimos anos o assunto não tem sido pu- blicamente discutido com a profundidade necessária. Durante a cerimónia de assinatura do acordo no dia 8 de Janeiro de 2019, 60 pessoas protestaram numa curta marcha que teve início na Junta de Freguesia do Samouco e terminou na rotunda de acesso à base aérea, na sua maioria membros da Plataforma Cívica Ae- roporto BA6-Montijo Não, uma associação local ativa desde junho de 2018. A plataforma reúne motivações díspares em relação à sua oposição a um aeroporto civil no Montijo, desde preocupações ambientais e sanitárias até à segurança aeronáutica e ao desejo de ver construído um aeroporto ainda muito maior noutro local como por exemplo no Campo de Tiro de Alcochete, a pouco mais de uma dezena de quilómetros de distância. Poucos foram os manifestantes que se opunham a qualquer aumento da  capacidade aeroportuária em qualquer local, exigindo antes a revisão de um modelo de desenvolvimento baseado na queima de combustíveis fósseis numa desesperada tentativa de manter a ideologia do crescimento económico desenfreado, mesma perante a catástrofe climática iminente.

Os motivos da assinatura do contrato numa altura em que ainda se aguarda pela avaliação ambiental do projeto são nebulosos. A associação ambiental ZERO já reclamou a necessidade de uma avaliação ambiental estratégica para o conjunto dos dois empreendimentos em Lisboa e no Montijo tendo já apresentado queixa junto da Comissão Europeia. Considera ainda que o Governo está a tentar implementar uma política do “facto consumado” exercendo uma pressão inadmissível sobre a Administração a elaborar o estudo de impacto ambiental referente a uma zona de avifauna sensível como é o estuário do Tejo. No dia 7 de Março de 2019, a ZERO acabou por interpor uma ação judicial com carácter de urgência no Tribunal Administrativo de Lisboa contra a APA – Agência Portuguesa de Ambiente, na sua qualidade de Autoridade Nacional de Avaliação de Impacte Ambiental (AIA) e de Avaliação Ambiental Estratégica (AAE), no sentido de obrigar à realização de uma Avaliação Ambiental Estratégica relativa à decisão de instalar um aeroporto complementar no Montijo.

No entanto, as críticas em  relação ao aumento da capacidade aeroportuária são muito mais abrangentes tendo em conta a catástrofe climática iminente  e o papel da aviação como grande emissor de gases com efeito de estufa. De acordo com a organização não-governamental “Stay Grounded”, existem em todo o mundo  mais  de  1200  projetos de ampliação ou construção de aeroportos que servem sobretudo os interesses corporativos de grandes empresas. Está por explicar como o Governo Português quer justificar a flagrante contradição entre o Roteiro para a Neutralidade Carbónica em 2050 cuja versão preliminar acabou de publicar e o investimento no aumento da capacidade aeroportuária. Mesmo que os transportes aéreos e marítimos tenham ficado fora dos acordos de Paris, torna-se gritante a incoerência neste tipo de decisões políticas.

Não nos podemos ainda esquecer que com obras de menor dimensão o número de passageiros no Aeroporto de Lisboa quase triplicou nos últimos 15 anos tendo sido quebrado a barreira dos 10 milhões de passageiros anuais pela primeira vez em 2004 e a barreira dos 20 milhões em 2015 atingindo um máximo em 2018 com 29 milhões de passageiros. Os efeitos nefastos desta explosão do tráfego aéreo são sentidos a todos os níveis. A “turistificação” do centro de Lisboa com a construção de hotéis e transformação de núcleos habitacionais em “alojamento local” provocou a expulsão de muitos lisboetas das suas casas, por um lado devido a despejos devido à alteração do regime de arrendamento urbano (“Lei Cristas”) e por outro lado devido ao aumento incomportável das rendas ou do preço de aquisição de habitação. A quota de alojamento local chegou a atingir mais de 40% das camas existentes em algumas zonas históricas da cidade tendo sido suspensa a autorização de novas unidades nas zonas mais afetadas.

As  consequências  perniciosas do tráfego aéreo em relação à saúde da população residente na proximidade de aeroportos têm sido negligenciadas. No entanto, estudos científicos demonstraram maior morbilidade e mortalidade do foro cardiovascular em pessoas expostas regularmente a níveis de ruídos elevados provenientes de aviões a aterrar ou, sobretudo, a levantar voo. O ruído provoca ainda alterações de aprendizagem na população estudante, muito exposta em Lisboa pela localização de escolas e universidades no corredor predominante de aproximação dos aviões. Outro efeito prejudicial da aviação sobre a saúde prende-se com a poluição atmosférica provocando um aumento das doenças respiratórias. Possivelmente, em Lisboa os protestos contra o aumento exponencial do tráfego aéreo nos últimos anos não têm sido mais visíveis porque o corredor de levantamento de voos com os ventos predominantes do quadrante norte, com níveis de ruídos mais elevados, se situa fora da cidade de Lisboa, no concelho de Loures, nomeadamente na zona de Camarate, habitada predominantemente por uma população migrante, pobre e socialmente desfavorecida. Com os dados disponíveis até ao momento, não parece haver dúvida que se trata de um projeto megalómano e insano que coloca os interesses económicos de grandes empresas acima da saúde e do bem-estar da população afetada.

A  Rede  para  o Decrescimento é um movimento que questiona de forma mais radical um  modo de vida ecologicamente insustentável e socialmente destrutivo baseada na filosofia do crescimento económico desenfreada e a sua vertente mais destacada, o capitalismo neoliberal. Já hoje a pegada ecológica das sociedades industrializadas excede em muito os recursos não-renováveis da Terra e a sua capacidade de suporte para os resíduos e a poluição resultantes de elevados níveis de consumo de bens e serviços que, sem satisfazer as necessidades materiais básicas de uma grande parte da população mundial, sujeitam a maioria à servidão de empregos alienados, num ritmo alucinante de deslocações e em disponibilidade permanente para o empregador, para sustentar a volúpia devoradora de um monstro chamado “cresci- mento económico”, dos seus acólitos, e dos beneficiários que se deslocam preferencialmente em aviões privados para fugir para os seus refúgios idílicos e (ainda) não afetados pela catástrofe climática iminente que se abate em primeiro lugar sobre os mais pobres e desfavorecidos.
Perante a leviandade do acordo assinado pelo Governo Português e a VINCI Airports a Rede para o Decrescimento exige desde já a revogação do acordo financeiro assinado com a VINCI Airports. Exige ainda a realização de um estudo científico sobre os efeitos na saúde e bem-estar da população de Lisboa e do Concelho de Loures, mais afetada pela operação do Aeroporto Humberto Delgado, nomeadamente no que diz respeito à prevalência e incidência de doenças cardiovasculares e respiratórias, em comparação com a restante população para aferir a inocuidade sanitária da operação existente e a realização de um estudo semelhante sobre os efeitos esperados na população da Margem Sul do Tejo, nomeadamente a população residente nos concelhos de Montijo,  Alcochete  e  Moita, em consequência da conversão da BA nº 6 num aeroporto comercial. Será imprescindível insistir no escrupuloso cumprimento dos regulamentos nacionais e europeus no que diz respeito ao impacto ambiental de qualquer expansão da capacidade aeroportuária, tanto em Lisboa ou no Montijo, e a realização de uma avaliação ambiental estratégica, em concordância com as ações já desenvolvidas pela associação ambiental ZERO. E não deixa de ser crucial avaliar a “capacidade de carga turística” em Lisboa e outras cidades portuguesas para saber qual o número máximo de pessoas que pode visitar os locais turísticos ao mesmo tempo sem causar danos do ambiente físico, económico e sociocultural, e sem diminuir de forma significativa a qualidade da satisfação do próprio visitante. Por fim, não se pode compactuar com a exclusão do transporte marítimo e aéreo no Roteiro para a Neutralidade Carbónica em 2050, exclusão esta que representa uma absoluto contra-senso em relação ao espírito do documento. Será necessário desenvolver alternativas estratégicas e ambientalmente mais favoráveis em comparação ao tráfego aéreo, incluindo nomeadamente o transporte ferroviário.

Quando nos querem de cabeça nas nuvens: Stay Grounded!
«Uma massiva onda de expansão aeroviária está a acon- tecer a nível mundial: cerca de 1200 projetos de ampliação ou construção de aeroportos, muitos deles impostos por governos a serviço dos interesse corporativos.»
A rede Stay Grounded, em português ATERRA, surgiu há dois anos e não para também ela de crescer. O seu manifesto, assinado até ao momento por 110 grupos de todo o mundo, lembra que «a aviação é o meio de transporte mais danoso para o clima» e propõe 13 passos para transformar o transporte, a sociedade e a economia.

Um dos grupos é o Grow Heathrow, que ocupa há dez anos um terreno na zona prevista para a construção da terceira pista do maior aeroporto de Londres, que se transfor- mou num projeto de Transição, repleto de hortas comunitárias. Outro, a coligação Back on Track, em defesa dos comboios noturnos na Europa. Em Portugal, juntaram-se para já Climáximo, GAIA e Rede para o Decrescimento, que se opõem ao crescimento aeroportuário previsto em Lisboa.

Este verão, de 12 a 14 de julho, a Stay Grounded organiza o primeiro encontro internacional Decrescimento da Aviação. Acontecerá em Barcelona, uma das cidades que se debate com a aterragem do turismo de massa, e será «livre de voos». Mais info em stay-grounded.org

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